Obrigada meu amigo, por tudo.

'Quando ele começou a passar o guardanapo no prato para limpar o molho da boca, mamãe me olhou chorando;
- Mirinha seu pai está ficando louco?
Uma tarde estávamos em minha casa e ele apareceu na sala, com a calça ensopada de xixi, mamãe me olhou chorando;
- Rubens você fez xixi na calça?
Tanto choro, tantas histórias...
E eu tentava acalmar a minha mãe, para que ela conseguisse suportar a dor de assistir a morte lenta daquele que foi seu ?grande amor? (como ela disse muitas vezes); o pai de seus filhos, o provedor, aquele que assumiu a responsabilidade de cuidar da família - desde matar as baratas, consertar a torneira ou, o ferro de passar roupa, até economizar para construir casas, que seriam a segurança de uma velhice tranquila.
Papai sempre foi um homem fechado, nunca falou dos seus medos e nem expos suas feridas; falava apenas de planos, sonhos, novidades que estava lendo, ou histórias de infância, quando conversava com fantasmas e caçava lobisomens. Nada sobre mágoas, ou fragilidade.
Mamãe aprendeu a ver nesse homem forte e determinado, o seu porto seguro e assim foi durante 49 anos, mas no último ano o braço forte que sempre nos amparou começou a enfraquecer e pedir apoio para caminhar, ou apenas segurar a colher.
A princípio mamãe imaginava que deixar o carro aberto e ligado no meio da rua, era sinal de estresse; repetir dezenas de vezes a mesma história era chatice do velho rabugento que ele estava se tornando; andar com o corpo inclinado para frente era esquisitice de velho, guardar a chave na geladeira era distração, pois a mente estava muito cansada e direcionada para resolver problemas... Tudo teria uma justificativa, até o momento em que ele começou a ter dificuldade para completar uma frase, lembrar de uma palavra, ou simplesmente pegar dinheiro e dar para o cachorro comer.
Mamãe não sabia onde estava o timão daquele barco, ela nunca se atreveu a questionar a competência do nosso capitão, pois ele sempre conduzira nossa família-embarcação para longe dos perigos e privação.
Aquela mulher assistia assustada as cenas mais desesperadoras de toda a sua vida. Aquele homem que sempre protegeu, agora fugia de casa no meio da noite; aquele marido tímido que passava o dia todo lendo, agora ficava perambulando pela casa fazendo xixi e cocô no corredor e na sala.
Dar banho no marido e passar pomada para evitar assaduras ou escaras; trocar fralda daquele que sempre carregou todos no colo; insistir para abrir a boca e comer só mais ?uma colherada? para ficar forte; ajeitar roupa de alguém que permanece imóvel como um boneco... fugia de tudo que mamãe sonhara, da convivência com seu ?príncipe encantado?.
A realidade às vezes surge como um soco no meio do estômago e ficamos perplexos, sem saber como lidar com a avalanche de situações surreais e desesperadoras.
Não fomos preparados para sermos pais de nossos pais e, muito menos pais dos pais dos nossos filhos.
Essa doença cruel quebra todas as regras que criamos para construir um lugar seguro no mundo; desconstrói nossos castelos de areia como um tsunami que varre tudo, sem nos dar a menor chance de salvar alguma coisa do que fomos.
A Vida não nos fornece Manual para que possamos compreender as regras do Jogo de existir, então escrevemos nosso manual durante toda a vida e de repente, o Alzheimer rasga essas páginas e revela a fragilidade das nossas regras e interditos; a impermanência de tudo que acreditávamos ?eterno?.
O Alzheimer ri da nossa patética arrogância diante do ?poder? que exercemos na Vida e revela a dolorosa perplexidade, quando a roda vida gira e constatamos nossa real impotência e fragilidade.
Mamãe não assumiu o comando daquele barco, porque estava assustada e perplexa demais, o marido virou filho, depois bebê, depois um estranho que não conversava e nem andava. E ela assistiu tudo isso, tentando se agarrar a tudo que foram, todas as emoções e vitórias, todas as derrotas e desafios... ela se segurou no nosso capitão, mesmo quando ele se tornou uma peça estranha, naquela embarcação que começava a afundar.
O que haveria de resistir a tudo isso?
O amor e o companheirismo que compartilharam durante toda a vida e, no dia em que papai estava no hospital, algumas horas antes de morrer, ela colocou a mão sobre seu peito e disse:
- Obrigada meu amigo, por tudo.
Ele mexeu os olhos e eu entendi que ele entendeu; eu saí do quarto e fiquei na calçada sentada na guia, tentando entender o que sustentou todo o respeito e admiração, que ela sempre teve por ele e descobri que acima de qualquer coisa, eles eram amigos.
Amigos!'
Míriam Morata, autora de Alzheimer diário do esquecimento, Alzheimer recolhendo os pedaços e Alzheimer Assombro e Cura do Cuidador.

