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A vida é tão surpreendente

07/04/2020 às 16:14
Miriam Morata
@miriammorata | Arquiteta
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"Minha tia Lola estava na cama do hospital, eu estava ao lado dela e perguntei se queria um pouco de água. Ela disse que estava com sede, mas o copo que estava ao lado da cama era para leite. Eu disse que estava vazio e ela insistiu;

- Mas a enfermeira coloca leite nele. O copo para água ela levou.

E eu continuei insistindo;

- Tia, eu coloco água e depois ela vem com o leite, a água não vai sujar o copo.

- Não. As coisas tem que ser do jeito que são, não dá certo mudar o que está posto. Se existem regras são para serem seguidas.

Ela morreu naquela tarde e quando fui até o quarto pegar suas coisas, sobre o móvel estava o copo vazio sem leite e sem água, e a cama estava sem ela. Os copos foram para o lixo e ela morreu com sede.

A tia Lola me ensinou exatamente o oposto do que tentou. Algumas regras existem para serem experimentadas e se não trouxerem felicidade, prazer, dignidade, ou um pouco de paz nos momentos mais difíceis da vida, elas devem ser quebradas.

E quando meus pais adoeceram, percebi que a vida deles e a minha, não teria muito espaço para a felicidade ou um pouquinho de prazer, pois o Alzheimer invade tudo e se apossa das horas, dos lugares, das pessoas...

Mamãe adorava doces, embora fosse diabética sempre tinha algum docinho escondido no meio do alface, ou na sacolinha do tomate. Eu chegava na casa e revistava tudo, algumas vezes fingia que não via, só para agradar a coração da minha velhinha.

Quando veio morar comigo, parecia uma criança pedindo doce;

- Mirinha coloca um pedacinho de marmelada no meu pãozinho, só para dar um saborzinho.

- Mãe a senhora não pode comer doce, o diabetes vai subir.

- Só um pedacinho.

E eu colocava.

Meu pai era guloso, adorava comer bem e sempre exageradamente. Qualidade sem quantidade não tinha valor para papai.

- Pai o que o senhor quer de sobremesa?

- Sorvete.

- Mas pai, o senhor não pode tomar sorvete, o diabetes vai subir.

- Só um sorvetinho não vai fazer diferença. Pede para o moço colocar pouca cobertura.

E eu comprava o sorvete e pedia para colocar bastante cobertura.

E eles saboreavam esses doces com tanto prazer, tanta felicidade que até o Alzheimer se rendia e dava uma trégua.

De quantos pequenos prazeres a gente se priva, só para prolongar os nossos dias?

Fomos educados a trocar prazer por algumas horas a mais nosso prazo de validade, mesmo que esse pedaço de vida barganhada seja dolorosa e sem sentido.

Quando o Alzheimer entra em uma família tudo adoece, e para que essa doença não matasse tudo que amávamos, eu criei uma regra, para nocautear esse alemão poderoso e cruel. Decidi que eu realizaria todos os desejos dos meus pais, e tentaria realizar os meus na medida do possível.

É tão pouco o que a gente precisa para ter alguns instantes de felicidade; assistir com ela, o filme que ela adorava e tinha assistido quando era jovem (Casa de Bonecas); ouvir ao lado dele todas as músicas de Vivaldi o dia inteiro; comer pastel com caldo de cana no japonês da pracinha; comer salaminho enquanto assiste à novela; passear na praça da República para ver artesanato; assistir jogo do Corinthians junto com ele e xingar o juiz ladrão...

A vida é tão surpreendente, no meio de tanta dor, tanta privação eu aprendi muito sobre a felicidade e a abundância."

Míriam Morata, autora de Alzheimer diário do esquecimento e Alzheimer recolhendo os pedaços.

Miriam Morata
@miriammorata | Arquiteta
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